_*O perigo no reforço dos poderes dos juízes criminais*_
Comentário crítico ao projeto do Governo de reforço dos poderes dos juízes criminais e de alteração do Código de Processo Penal
O conjunto de Propostas de Lei e Projetos de Lei apresentados ou impulsionados pelo atual Governo, visando a alteração do Código de Processo Penal (CPP), insere-se num discurso recorrente de “celeridade”, “eficácia” e “combate à criminalidade grave”, particularmente em domínios sensíveis como a violência doméstica e a criminalidade económico-financeira. Todavia, sob uma análise crítica e constitucionalmente orientada, tais iniciativas levantam sérias reservas quanto ao equilíbrio do processo penal, à proteção das garantias de defesa e à própria arquitetura do Estado de direito democrático.
1. A retórica da celeridade versus as garantias fundamentais
A aceleração da justiça penal é um objetivo legítimo. Contudo, celeridade não pode transformar-se num valor absoluto, sob pena de se sacrificar o núcleo essencial dos direitos fundamentais do arguido, consagrados nos artigos 20.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa.
A introdução de multas por atos considerados dilatórios, sem uma definição rigorosa e objetiva do que constitui efetivamente uma manobra abusiva, cria um risco evidente:
• a penalização indireta do exercício do direito de defesa;
• a intimidação do contraditório e da iniciativa processual do arguido e do seu defensor;
• a deslocação do processo penal para um modelo funcionalista, onde a rapidez prevalece sobre a justiça material.
Num processo penal democrático, nem todo o atraso é ilegítimo, e nem toda a diligência defensiva é dilatória. O perigo reside em entregar ao juiz criminal um poder sancionatório excessivamente discricionário, sem balizas normativas claras.
2. Uso de declarações prestadas em inquérito: erosão do princípio da imediação
A possibilidade de utilização, em julgamento, de declarações prestadas em fase de inquérito — mesmo quando a vítima se recusa a depor em audiência — representa uma das alterações mais problemáticas do ponto de vista constitucional.
Tal solução:
• enfraquece o princípio da imediação e da oralidade, pilares do julgamento penal;
• reduz drasticamente a eficácia do contraditório pleno, uma vez que o arguido fica privado da possibilidade de confrontar diretamente a testemunha perante o tribunal;
• aproxima perigosamente o processo penal de um modelo inquisitório mitigado, em que a prova se cristaliza numa fase pré-judicial.
Ainda que a proteção das vítimas, nomeadamente em crimes de violência doméstica, seja um imperativo ético e jurídico, essa proteção não pode justificar a compressão estrutural do direito de defesa, sob pena de se criar uma justiça penal assimétrica.
3. Declarações para memória futura: exceção transformada em regra
A generalização do regime de “declarações para memória futura” para vítimas vulneráveis, incluindo crianças, merece também reflexão crítica.
O problema não reside no instituto em si, mas na sua transformação de exceção em regra. Ao fazê-lo:
• antecipa-se o julgamento para a fase de inquérito;
• cristaliza-se a prova num momento processual em que o arguido tem, muitas vezes, uma intervenção limitada;
• enfraquece-se a função do julgamento como espaço central de formação da convicção do juiz.
O risco é claro: o julgamento passa a ser um momento de confirmação, e não de apreciação crítica da prova.
4. Criminalidade económico-financeira e perda alargada de bens
No combate à corrupção e à criminalidade económico-financeira, a proposta de reforço da perda alargada de bens suscita questões relevantes quanto ao princípio da presunção de inocência e ao ónus da prova.
Quando o sistema penal se aproxima de mecanismos de natureza quase administrativa ou patrimonial sancionatória, exige-se um cuidado redobrado, sob pena de se instaurar uma lógica de “culpa por suspeita” ou de inversão prática do ónus probatório, incompatível com o artigo 32.º, n.º 2, da CRP.
5. Reforço do poder judicial ou deslocação de responsabilidades políticas?
O reforço dos poderes dos juízes criminais surge, em parte, como resposta à incapacidade estrutural do sistema:
• falta de meios;
• carência de magistrados;
• ineficiência organizativa;
• deficiências na investigação criminal.
Em vez de uma reforma estrutural séria, opta-se por transferir para o juiz poderes acrescidos de gestão, sancionamento e filtragem processual, colocando-o numa posição simultaneamente garantística e disciplinadora — o que fragiliza a sua imparcialidade objetiva.
6. Conclusão: uma justiça mais rápida, mas menos justa?
Em síntese, as alterações propostas revelam uma tendência preocupante:
a substituição de um processo penal garantístico por um processo penal funcional, orientado para resultados estatísticos e perceção pública de eficácia.
A justiça penal não pode ser avaliada apenas pela rapidez das decisões ou pelo número de condenações. A legitimidade do sistema reside na confiança dos cidadãos de que ninguém será condenado sem um processo justo, contraditório e equilibrado.
Reforçar os poderes dos juízes criminais sem reforçar, em igual medida, as garantias de defesa e os meios do sistema é um atalho perigoso, que pode comprometer, a médio prazo, a própria credibilidade da justiça penal portuguesa.

